UM NARRADOR ESTILHAÇADO, UM MUNDO EM RUÍNAS: UMA LEITURA DE “OS CUS DE JUDAS” DE ANTONIO LOBO ANTUNES
Narrador. Guerra. Memória. História. Testemunho.
A guerra do governo salazarista contra Angola é pano de fundo funesto do romance Os cus de Judas, cenário de horrores onde o narrador personagem foi jogado a serviço da pátria portuguesa para experimentar vinte e sete meses de angústia e morte que não param de lhe perturbar a alma mesmo encerrada seis anos antes de sua narrativa. A presente análise desse narrador, sob enfoque dialético, discute como essa experiência traumática aniquilou a vida e o mundo ao qual ele julgava pertencer. Sua memória, sua história e sua identidade começam a implodir desde o momento em que embarcou no navio sentindo-se expulso para a violência paranoica da guerra legitimada sob comoventes sons de “marchas guerreiras” e “discursos heroicos” dos senhores portugueses “donos da guerra”. Preso em um tempo de cinzas entre ruínas do passado, o narrador sente-se mergulhado em um hoje sem amanhã. Um angustiante presente constante de morte que se propaga em tudo e tudo contamina com o “cheiro pestilento da guerra”. Essa sensação é comum às narrativas que testemunham experiências extremas e que desafiam os limites da expressão, da percepção e da compreensão. Nessa literatura de ruína e aniquilação, emerge um novo tipo de sujeito perdido, fragmentado, sem referência, porém, a quem resta ainda a palavra, mesmo vazia de sentido, carente de audiência capaz de ouvir, de reconstruir. Essa atitude conforme Paul Ricoeur (2007) configura-se como um trabalho político e ético. Além das teorias de Ricoeur inerentes à memória, história e esquecimento, o estudo em pauta fundamenta-se também nas teorias de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno no que concerne ao narrador e seu papel na literatura contemporânea. Jeane Marie Gagnebin e Márcio Seligmann-Silva corroboram com os autores acima elencados e às inerentes questões pertinentes à literatura testemunho. Como esta se constitui muito mais como uma nova abordagem de produção literária e artística do que como um novo campo de estudo, de acordo com Seligmann-Silva (2003) continua sendo imprescindível discutir linguagem, palavra, discurso e enunciação o que se faz à luz de Michael Bakhtin, Émile Benveniste e Emanuel Lévinas.